Direitos humanos e prisão preventiva de brasileiros na Bolívia

Contra a lógica e as leis – Há mais de um mês, 12 torcedores corintianos estão presos na cidade de Oruro, na Bolívia, suspeitos da morte de um torcedor boliviano, atingido por um sinalizador durante o jogo contra o San José, pela Copa Libertadores da América. Apesar de um menor, que já está no Brasil, ter assumido a autoria do disparo acidental do sinalizador – isso comprovado por perícia que constatou a veracidade da confissão – a Justiça boliviana ainda não soltou os torcedores e nem dá sinais de que fará.

De acordo com o advogado Ricardo Castilho, especialista em Direitos Humanos e diretor-presidente da Escola Paulista de Direito (EPD) os limites internacionais da Jurisdição de cada Estado são ditados por suas normas internas, mas, regra geral, define-se pela territoriedade (artº 7º do Código Penal Brasileiro). Portanto, se alguém pratica crime no exterior, poderá ser julgado naquele país.

Entretanto, destaca o advogado, a presente questão envolve, entre outros pontos controvertidos, o exame dos fundamentos que deveriam autorizar a prisão preventiva dos brasileiros no exterior, as medidas processuais a serem adotadas enquanto aguardam julgamento, o tempo máximo em que podem ficar privados da liberdade sem a decisão de um juiz sobre a legalidade do meio coercitivo, além do direito a indenização ou reparação pela prisão ilegal ou arbitrária.

Nesse contexto, Ricardo Castilho alega que existe uma série de normas jurídicas internacionais e jurisprudência dedutíveis do Comitê dos Direitos do Homem, dos Tribunais Interamericano e Europeu dos Direitos do Homem e da Comissão Africana dos Direitos do Homem e dos Povos que servirão de fundamento para desenvolver nossa linha de entendimento sobre essa complexa situação.

De início, ressalta que o grupo de trabalho sobre a Detenção Arbitrária, destacado pelas Nações Unidas, elaborou, em 1963, um robusto documento em que salienta a premissa fundamental que embasa a garantia dos direitos fundamentais expressos pela Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948: todos os seres humanos têm direito à segurança e à liberdade. Ou seja, ninguém pode ser privado de sua liberdade a não ser por motivo justificável e em conformidade com as regras procedimentais previstas em lei.

Esses direitos vêm expressamente garantidos pelo disposto no artigo 9º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, artigo 6º da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, além do artigo 7º, I, da Convenção sobre Direitos Humanos.

A Convenção Europeia dos Direitos Humanos, em seu artigo 5º, I, elenca, exaustivamente, os casos que autorizam a privação de liberdade. Mesmo assim, deverá estar em conformidade com específico procedimento legal.

Entretanto, na prática, muitos países, especialmente quando sujeitos a estados de exceção, realizam prisões sem motivo plausível e sequer disponibilizam a assistência de advogados que, em tese, poderiam coibir essa ação abusiva.

A prisão arbitrária, segundo o Comitê dos Direitos Humanos abrange a não adequação, a injustiça e a imprevisibilidade do meio coercitivo. Portanto, a contrario sensu, somente será lícita quando, além de legal, for necessária e razoável segundo a situação.

No caso em exame, os 12 brasileiros foram presos por haver suspeita da prática de uma infração. Entretanto, conforme dispõe as Convenções Americana e Europeia (artigo 7º, n. 5 e artigo 5º, n. 3, respectivamente), a prisão preventiva dos “suspeitos” exige a definição de prazo para seu cumprimento, ao final do qual, teriam adquirido o direito de serem postos em liberdade.

Além disso, segundo defende o Tribunal Europeu, a suspeita da prática do crime deve vir marcada pela razoabilidade. Ou seja, pressupõe a existência de fatos ou observações objetivas de que os imputados realmente foram os autores.

“Todavia, segundo a polícia boliviana, dois deles foram indiciados como responsáveis pelo crime por estarem com sinalizadores similares. Se isso é verdade, ainda que eventualmente tenham descumprido as leis do país e por tal mereçam ser processados, não podem ser acusados, a priori, pelo homicídio cometido”, explica Castilho.

Já quanto aos demais dez torcedores, estão presos como cúmplices. Nesse ponto, decorre logicamente, a seguinte ilação: Se dois estão presos e acusados de homicídio porque portavam sinalizadores, os demais estão presos por cumplicidade em qual conduta?, questiona o advogado.

“Os acusados não foram notificados sobre a existência de provas, especialmente periciais, que possam efetivamente relacioná-los com a conduta criminosa”, ressalta Ricardo Castilho explicando que a ausência de tal procedimento, segundo nosso direito interno, fere o princípio da ampla defesa na medida em que impossibilita a oportuna contradita.

A mesma determinação quanto à necessidade do indivíduo ser informado das acusações formuladas contra ele, em seu mais amplo significado, vem expressa pelo artigo 9º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos além do o artigo 4º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

Nesse ponto, corroborando a ideia de que os brasileiros estão presos arbitrariamente, Ricardo Castilho invoca a declaração fornecida pela chefe da investigação, na Bolívia: “Não dá para ter certeza plena se realmente foi um dos que estão presos. Só vamos saber quando as investigações acabarem, em seis meses”.

Esclarece, entretanto, que o Ministério Público de São Paulo atendeu às solicitações da Justiça boliviana e encaminhou as fichas de antecedentes criminais dos torcedores presos e uma cópia do vídeo da entrevista que identifica o autor do disparo – um jovem de 17 anos que confessou e se apresentou à Justiça. Ainda assim, no último dia 12 de Março, o pedido de liberdade condicional foi negado. E mais, a Justiça Brasileira ainda não recebeu cópia do processo boliviano como havia solicitado.

Conceitualmente, como se sabe, uma acusação forçada é aquela formulada na tentativa de agravar a situação, sem provas suficientes, na busca de qualificar o crime em prejuízo do acusado. Caracteriza, portanto, ato de má-fé. “Esse é, infelizmente, o perfil da situação. A Bolívia, que aderiu a muitos dos referidos Tratados, longe está de demostrar intenção de abreviar o processo contra os Brasileiros ou de analisar objetivamente as provas que compõem o processo judicial”, diz o advogado.

“Argumenta-se que as razões para tais arbitrariedades têm suporte político o que agravaria, ainda mais, a postura daquele país frente à comunidade internacional.” À par desses argumentos, os 12 brasileiros seguem confinados em 2 celas, separados dos demais presos, submetidos a péssimas condições de higiene, considerando que a ala possui um único banheiro, sem chuveiro e privada (há apenas um buraco no chão).

De toda maneira, em consequência da patente privação ilegal de liberdade, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos estipulam a obrigatoriedade de indenização por erro judiciário (artigo 14.6; e artigo 10, respectivamente).

Frente a esse panorama, os acusados poderão apresentar petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (em conformidade com o disposto no artigo 44 do Pacto de São José) contendo denúncias ou queixas de violação dos Tratados de Cooperação Internacional, posto que esta Comissão tem como função principal promover a observância e a defesa dos direitos humanos (artigo 41 do Pacto).

Com efeito, os Direitos Humanos, referendados pelos Tratados Internacionais, além de proteger os indivíduos, também são utilizados para punir os Estados e seus agentes contra ações arbitrárias. Ou seja, quando extravasam os limites da lei e da Constituição.

Tal se dá porque a Cooperação Internacional envolvendo os Direitos Humanos deve estar sempre marcada pela igualdade, equidade, reciprocidade, respeito e autodeterminação dos povos.