Já não se faz gente como antigamente

    (*) Ucho Haddad –

    A superficialidade do ser humano é tamanha, que muitas vezes me deparo com situações que chegam a provocar náuseas. O pior é que muitas pessoas adotam essa tal superficialidade como estilo de vida, certas de que ser igual à extensa maioria faz a diferença. Enganam-se, pois diferença faz aquele que adota um estilo próprio sem ferir o bom senso ou querer ditar moda, como se o mundo devesse seguir um modelo obtuso em que ter é infinitamente mais importante do que ser. Em outras palavras, cada qual vale por aquilo que tem e como exibe seus badulaques e bugigangas.

    Tomado por uma gripe covarde e que parece não querer dar trégua, entreguei-me nas últimas horas ao ócio televisivo, já que aquilo que pensei em fazer foi minimamente inviável diante do estado deplorável em que me encontro. Virando os canais da tevê, eis que me deparo com uma reportagem do enfadonho folhetim eletrônico da Vênus Platinada sobre a falta de preparo do Brasil para receber a Copa e os turistas que surgirão na esteira da bola.

    Por ainda vivermos em uma democracia, cada qual pode acreditar naquilo que convier, mas algumas tentativas de pasteurização são no mínimo condenáveis. O folhetim dominical da Globo avançava quando em cena surgiu uma consultora de etiqueta urbana. Confesso que foi a primeira vez que ouvi falar nessa profissão e também nesse nicho de trabalho. Quer dizer que se o ladrão colocar a arma na minha cabeça, querendo levar o que encontrar pela frente, antes é preciso telefonar para essa senhora que é uma espécie de rainha da cocada e me dirá como devo reagir diante do gatuno tresloucado.

    Passado o susto (o da televisão), eis que surge na telinha a tal “consultora de etiqueta urbana” tentando ensinar como o turista que virá ao Brasil para acompanhar a Copa do Mundo deve ser recebido. Essa coisa de padronização da elegância é algo tão absurdo que chega a irritar. Elegante para essa gente é ter atitudes dentro de um padrão pré-determinado, bastando um reles ultraje para que o incauto seja arremessado, sem direito a reclamação, no fosso da cafonice.

    Não, elegância está longe de ser um comportamento que mais parece uma sequência de situações coordenadas por robô ou um regente de orquestra sinfônica. Elegância é ter opinião própria sem vilipendiar a massa cinzenta de outrem. É ter coragem de, usando o tutano, criticar o que está errado por culpa de um Estado burro e corrupto e de uma sociedade utópica, encabrestada e refém dos modismos. Cafonice é querer provar ao mundo que o Brasil é o país de Alice e que até a Copa tudo estará dentro dos conformes da elegância. Balela da pior qualidade e sem certificado de garantia.

    Ainda de alma jovem e travessa, sou de um tempo em que a essência valia muito mais do que a aparência. Ou seja, importava, sim, o conteúdo, não a embalagem. Lamentavelmente, nos dias atuais o que prevalece é uma existência do tipo “porta-retrato”, com uma boa fachada e um pé na coxia lhe escorando. Sou do tempo em que pensar era fortuna, mas o momento atual exige que o cérebro permaneça desligado, pois a ordem mundial é o nivelamento por baixo.

    Imagine uma “consultora de etiqueta urbana” – essa é a mais galhofeira das piadas recentes – que grava uma reportagem usando óculos escuros a maior parte do tempo, inclusive em locais fechados. Pelo que sei, óculos escuros devem ser usados sob o sol ou diante do excesso de claridade. Se a luzes da gravação incomodam, que mude de tarefa e arrume um emprego de lanterninha de cinema. Essa senhora, que é de um tempo anterior ao meu, deve ter aprendido, assim espero, que óculos escuros, dependendo de como são usados, não passam de ode à deselegância.

    Que me perdoem os ditadores da moda, que abomino com todas as letras e forças, mas óculos escuros o tempo todo são muleta de quem gostaria de ser reconhecido pela essência, mas continua se escorando na aparência, mesmo que pasteurizada, pois só assim o divã do analista da esquina terá um dia de folga ao menos. Mas na contemporaneidade a história é outra – por que não afirmar que é estória. Basta engrossar um batalhão de genuflexos, ser mais “um igual” e você será admitido no clã da incoerência, escapando da peçonha das bocas malditas. Isso explica a legião de pessoas que, por serem cada vez mais iguais, parecem propagandistas de free-shop de aeroporto.

    Essa gente acredita que ser chique é estar igual a uma centena de pessoas, reduto onde é quase impossível distinguir quem é quem, tamanha falta de personalidade. Não, ser chique é uma questão de cromossomo, não de uma cartilha bitolada que é arremessada por uma dúzia de pessoas sobre uma horda de amestrados.

    Traduzindo para o bom e velho idioma dessa controversa Terra de Macunaíma, já não se faz gente como antigamente. Uma pena, por um lado, ainda bem, por outro!