Vida que segue

    Marli Gonçalves –

    Tenho certeza de que todo mundo pensa o quanto viver, simplesmente viver, é muito louco. Pior: a gente vive com a certeza de que vai morrer um dia desses. E aí, que vai acontecer? Como será? Que dia e do quê? Mas, fundamentalmente, pelo menos eu penso que uma das maiores dúvidas é o que ficará de lembrança dos nossos passos aqui na Terra

    Tenho um amigo que várias vezes já me falou sobre isso, sobre seu desejo secreto que certamente executaria se pudesse: morrer de mentira. Para ficar por ali ouvindo tudo o que dizem dele no velório, saber quem iria e como se comportariam – quem choraria, quem jogaria pedra, assim por diante. Ele fica fascinado e lembra da ideia se vê algum filme sobre pós-vida ou, ainda, algum caso daquela doença que todo mundo pensa que o cara está morto e de repente ele pisca, a catalepsia.

    Por que estou falando sobre isso? Porque, primeiro, como disse no início, viver é louco; segundo, esta semana perdi uma pessoa muito importante para mim.E, terceiro, porque tenho certeza que essa pessoa nunca vai morrer de verdade, assim como meu melhor amigo que perdi há 20 anos em um agosto desses, e assim como minha mãe, há 10 anos. Eles realmente não estão aqui, carne e osso, entre nós. Só que deixaram tanta coisa boa, tantas lembranças importantes, ensinamentos fundamentais, que sobreviverão todos os dias. Vai me dizer que você nunca teve essa sensação?

    Não é saudade, embora ela também esteja presente sempre. É mais real do que isso, mais palpável, não tem nada de fantasma – é presença boa. Dá até para consultar em pensamento sobre este ou aquele assunto, pedindo orientação. Nessas horas a gente pensa muito na energia das palavras, na vibração que cada uma delas traz e se perpetua em algum cantinho, e que vão se juntando igual às células formando um novo corpo que também pode ser etéreo ou invisível para nós, ainda mortais. Fica mais fácil entender a eternidade e a vida ou qualquer coisa após a morte. Pelo menos acho mais lógico.

    Claro que ter feito algo para a humanidade, ter sido importante, famoso, badalado e reconhecido ajuda a nunca ser esquecido em nenhum dia. Ah! E a ser lembrado de uma forma legal, não daquelas quando costumamos ficar estarrecidos e comentar: “Fulano deve estar se mexendo no túmulo”. Ultimamente a coisa está mais louca ainda, porque com tantas imagens, fotos, gravações, perfis em redes sociais, googles, não dá mais para ninguém morrer quietinho – escarafuncham tudo. Pior: descobrem alguns segredos.

    Mas essa não é a minha questão. O engraçado foi a coincidência de, justamente no dia em que soube da morte e pensei que nunca mais veria esse meu mestre, inclusive espiritual, na quinta passada, a mocinha da novela das nove que morre no altar implora horas antes à sua cuidadora: “Não me deixe ser esquecida”. Na novela isso se traduz no aroma de rosas brancas e acordes de Clair de Lune que, pelo que entendi, infernizarão muito o tal noivo traidor e a amante da mocinha rica e sem graça, que realmente precisaria pedir. Mas isso é novela.

    Na vida real essas lembranças que trazemos talvez sejam menos melosas, mas mais conscientes. Por ela as pessoas pedem que missas sejam rezadas, frequentam cultos ou mesas brancas e etceteras, em busca de algum contato ou notícia, de algo que apazigue seus corações, pensamentos e até arrependimentos.

    Sei que na verdade foi também nessa semana que de repente precisei ser absolutamente racional, forte e lúcida, buscando palavras firmes para consolar uma família em desespero e os outros amigos a quem acabei incumbida de dar a péssima notícia. Busquei não sei onde as palavras de conforto e acabei reparando que todas elas traduziam que eu sentia que apenas ele não estaria mais na Terra, mas que sua lembrança e ensinamentos de verdadeira humildade e sabedoria estariam encravados para todo o sempre em todos que o conheceram. Esse alguém que passou a vida, olha a ironia, sendo a ponte entre mundos, médium, usando seu corpo e soltando sua mente para incorporar espíritos guerreiros, deuses, mestres, ou doidivanas ou aflitos, em busca de luz, da “esquerda” e da “direita”. Céu e Inferno.

    Me restou meditar na vida que segue; uma oração silenciosa. Com os olhos rasos d’água, gotinhas teimosas escorrendo do cantinho e uma tristeza muito particular. Pensando no tempo que escorrega. No que temos de deixar. Em tudo isso.

    São Paulo, 2013

    (*) Marli Gonçalves é jornalista – Espera ainda poder fazer muita coisa para deixar, e para muita gente.

    Tenho um blog, Marli Gonçalves, divertido e informante ao mesmo tempo, no http://marligo.wordpress.com. Estou no Facebook. E no Twitter @Marligo