O justo desobedece

(*) Felipe Gini –

felipe_gini_02Obedecer ao Estado é desobedecer a Justiça. “O melhor governo é o que menos governa” é o lema central do Tratado de Desobediência Civil de Thoreau. Para ele, “quando os homens estiverem preparados, será este o tipo de governo que terão”, pois “o governo, no melhor dos casos, nada mais é do que um artifício conveniente; mas a maioria dos governos é por vezes uma inconveniência”.

Acredito haver chegado esse tempo ao qual se refere Thoreau. Naquele tempo, os direitos democráticos, que se afunilam no sufrágio universal, eram dados a uma pequena parcela da sociedade. Passadas todas as tiranias das maiorias, o voto passou a ser um direito constitucional em grande parte do mundo. Mulheres, negros, índios, estrangeiros e todas as minorias passaram a ter seus direitos protegidos pelas constituições, assim sendo, é chegado o tempo de praticar a democracia sem intermediadores. “O próprio governo, que é simplesmente uma forma que o povo escolheu para executar a sua vontade, está igualmente sujeito a abusos e perversões antes mesmo que o povo possa agir através dele”. Veja bem, esse artigo não visa invalidar as outras formas de governo vigente, mas essencialmente propor uma sociedade governada do microcosmos para o macrocosmos, não o contrário como hoje nos é imposto. Se “o governo é um artifício através do qual os homens conseguiram de bom grado deixar em paz uns aos outros” e “sua conveniência máxima só ocorre quando os governados são minimamente molestados por seus governantes”, a melhor forma de responsabilizar o cidadão por sua realidade é auferir-lhe o poder de governar sua própria vizinhança. Assim, “se fossemos julgar estes senhores” autogovernados “levando em conta exclusivamente os efeitos dos seus atos – esquecendo suas intenções – eles mereceriam a classificação dada e as punições impostas a essas pessoas nocivas que gostam de obstruir ferrovias” e deste modo faríamos o cidadão tão culpado de suas ações quanto da sua passividade, pois impondo a “cada homem expressar o tipo de governo capaz de ganhar seu respeito, estaremos mais próximos de conseguir formá-lo”. Tal responsabilidade civil impulsiona o indivíduo em direção ao bem coletivo, à justiça e às leis de sua própria vida. Não mais haverá o cidadão capaz de lavar suas mãos e confiar na lei frente ao injustiçado. Sendo este cidadão algoz e vítima de sua própria inaptidão para a justiça, “devemos ser em primeiro lugar homens, e só então súditos. Não é desejável cultivar o respeito ás leis no mesmo nível do respeito aos direitos”

É chegado o tempo de resistir e através de uma revolução a nível municipal cobrar do Estado Federativo uma autonomia administrativa que dê à vizinhança o poder maior de autogovernar-se, aumentando a eficiência da máquina, a transparência em seus impostos e a proximidade dos governados e seus anseios. “Todos reconhecem o direito a revolução, o direito de negar lealdade e oferecer resistência ao governo sempre que se tornem grandes e insuportáveis a sua tirania e ineficiência”. Há uma evidente crise no sistema representativo vigente na maioria das democracias, crise esta intrinsecamente ligada ao ato de “depositar na urna um voto insignificante, cumprimentar timidamente a atitude certa, e de passagem, desejar-lhe boa sorte”, pois tal ato dissipa a responsabilidade do indivíduo sobre seu governo e possibilita ao governado isentar-se da culpa por uma má administração de sua própria vida. Diferentemente do que seria um sistema anárquico de governo, onde “é mais fácil lidar com o verdadeiro dono de algo do que com seu guardião temporário”. Afinal de contas, “toda votação é um tipo de jogo, tal como damas ou gamão, com uma leve coloração moral, onde se brinca com o certo e o errado sobre questões morais, e é claro que há apostas neste jogo. O caráter dos eleitores não entra nessas avaliações”, pois “há escassa virtude nas ações de massa dos homens” Com o sistema vigente “percebo que o homem considerado respeitável logo abandona a sua posição e passa a não ter mais esperanças no seu país, quando o mais certo seria que seu país desesperasse dele.” Já na anarquia, estaremos “todos, desta forma, de conformidade com a ordem e o governo civil, reunidos para homenagear e dar apoio a nossa própria crueldade.” Ou nossa própria justiça.

Enquanto houver leis, haveremos de descumpri-las, “existem leis injustas; devemos submeter-nos elas e cumpri-las, ou devemos tentar emendá-las e obedecer a elas até sua reforma, ou devemos transgredi-las imediatamente?” Segundo Thoreau, nossa maior autonomia enquanto cidadãos subordinados a um governo de maiorias é o descumprimento de suas leis. E assim o faremos. Não há julgador ou julgado, apenas dois extremos da aplicação de uma lei. E é “precisamente o governo o culpado pela circunstancia de o remédio ser de fato pior do que o mal. É o governo que faz tudo ficar pior. Por que o governo não é mais capaz e se antecipa para lutar pela reforma? Porque ele não sabe valorizar a sua sábia minoria? Porque ele chora e resiste antes de ser atacado? Porque ele não estimula a participação ativa dos cidadãos para que eles mostrem as suas falhas e para conseguir um desempenho melhor do que eles exigem?” “Porque ele sempre crucifica Jesus Cristo e excomunga Copérnico e Lutero e qualifica Washington e Franklin de rebeldes? Não é absurdo pensar que o único tipo de transgressão que o governo nunca previu foi a negação deliberada à prática de sua autoridade”. Sejamos, pois, desobedientes, sejamos livres. Para o pensamento de quebra irrestrita da autoridade governamental não há melhor caminho do que indignar-se, e assim aplicar a lei como se um legislador fosse. “Se ela for de tal natureza que exija que você seja o agente de uma injustiça para outros, digo, então, que se transgrida a lei. Faça da sua vida um contra-atrito que pare a máquina.” Assim, de modo algum participaremos das misérias que condenamos, pois não está dentro de nossas incumbências apresentar petições ao Governador e à Assembleia Legislativa, da mesma forma que eles nada precisam fazer de semelhante em relação a nós. “Afinal de contas, estou lutando contra homens, e não contra o pergaminho das leis.”

Seriam, então, a ação direta, os levantes, os surgos e insurgos, bem como a desobediência civil o único reduto, e o fim em si mesmo para os homens de bem. “Sob um governo que prende qualquer homem injustamente, o único lugar digno para um homem justo é também a prisão”. Para Thoreau, ser encarcerado por ideologia de justiça é o caminho para tornar-se um homem justo. “Se há alguém que pense ser a prisão um lugar de onde não mais se pode influir, no qual sua voz deixa de atormentar os ouvidos do Estado, no qual não conseguiria ser tão hostil a ele, esse alguém ignora o quanto a verdade é mais forte que o erro e também não sabe como a injustiça pode ser combatida com muito mais eloqüência e efetividade por aqueles que já sofreram na carne um pouco dela”. Devemos todos, alienar-nos a Machado de Assis, devemos prender-nos em manicômios, nas grades da loucura, e só assim teremos a revolução necessária para evoluir como sociedade. Pois não há justiça que dela mesma surja. “Quando o súdito negou a lealdade e o funcionário renunciou ao seu cargo, então a revolução completou-se”. O primeiro passo para a nova prática democrática é a descentralização do governo da vizinhança, colocando a cargo dos concidadãos a responsabilidade sobre a aplicação de suas próprias leis, já o segundo passo seria a autossuficiência energética e a subsistência, assim “se houvesse quem vivesse inteiramente sem usar dinheiro, o próprio Estado hesitaria em exigir que ele lhe entregasse uma quantia” ao isentar-se da obrigação de pactuar com a Federação, não valeria a pena acumular propriedade, dado que o acúmulo geraria ônus para com o Estado. “O que se tem de fazer é arrendar alguns alqueires ou ocupar uma terra devoluta, cultivar em pequena escala e consumir logo da sua produção. Você tem que viver dentro de si mesmo e depender de si mesmo, sempre de mala feita e pronto para remoçar”. Thoreau acreditava que não se deve governar com a razão, pois humanos não são feitos de números, assim cita Confúcio: “se um Estado é governado pelos princípios da razão, a pobreza e a miséria são fatos acabrunhantes; se um Estado não é governado pelos princípios da razão, a riqueza e as honrarias são fatos acabrunhantes”. Somos humanos passíveis de erro, governados por emoções, e a elas também desgovernados, por este motivo não se pode auferir a um Estado a força para se autogerir através dos artifícios da razão. E enquanto o formos “sai mais barato, em todos os sentidos, sofrer a penalidade pela desobediência do que obedecer” e assim o fez ao não pagar os tributos a ele impostos por seus vizinhos cobradores, e ao contemplar-se dentro das grades da loucura, no manicômio legal, proferiu: “vi que apesar da grossa parede de pedra entre mim e os meus concidadãos, eles tinham uma muralha mais difícil de vencer antes de conseguirem ser tão livres quanto eu”. Ele que nem por um momento se sentiu confinado, percebeu então que o Estado era um idiota, tímido como uma solteirona às voltas com sua prataria, incapaz de distinguir entre amigos e inimigos, perdendo assim todo o respeito que ainda tinha por ele e passando a considerá-lo apenas lamentável. “O Estado nunca confronta intencionalmente o sentimento intelectual ou moral de um homem, mas apenas seu corpo, os seus sentidos”, pois “não é dotado de gênio superior ou de honestidade, apenas de mais força física.”

Já no tocante aos impostos, sua visão prática se define muito bem na seguinte analogia: “quando defronto um governo que me diz: – a bolsa ou a vida, por que deveria apressar-me em lhe entregar o meu dinheiro? Ele talvez esteja passando por um grande aperto, sem saber o que fazer. Não posso ajudá-lo. Ele deve cuidar de si mesmo; deve agir como eu ajo.”

Essa visão de maior autonomia e isonomia na tributação seria um novo passo para o desenho de um imposto menos impositório, onde o tributado passaria a ser patrono daquilo que usufrui, em detrimento de ser-lhe imposto um tributo ao qual não se refere seu próprio uso. “Nunca me recusei a pagar o imposto referente às estradas, pois minha vontade de ser um bom vizinho é tão grande quanto a de ser um péssimo súdito”

Concluindo, “ainda não surgiu um homem dotado de gênio para legislar no nosso país”, portanto “ele não pode ter sobre a minha pessoa e meus bens qualquer direito puro além do que lhe concedo” e assim questiono junto ao autor de dito tratado:

“Será que a democracia tal como a conhecemos é o ultimo aperfeiçoamento possível em termos de construir governos? Não será possível dar um passo a mais no sentido de reconhecer e organizar os direitos do homem? Nunca haverá um Estado realmente livre e esclarecido até que ele venha a reconhecer no indivíduo um poder maior e independente – do qual a organização política deriva o seu próprio poder e sua própria autoridade – até que o indivíduo venha receber um tratamento correspondente.” Em suma, há um mundo possível na implementação de um sistema híbrido de democracia, que pode ser aplicada em pequenas localidades, no caso Brasileiro, em cidades com até 50 mil habitantes, que poderia representar um Estado realmente livre, mas: “ainda não surgiu um homem dotado de gênio para legislar em nosso país”.

(*) Felipe Gini odeia escrever na terceira pessoa, é formado em Marketing, pós-graduado em Administração, mestre em Publicidade e cursa pós-graduação em Ciência Política. Quando pequeno sonhava em ser presidente, mas hoje acha que não tem conhecimento suficiente para tal, se contentando com algum cargo executivo em uma localidade de até 50 mil habitantes para implementar sua tese de mestrado que está em construção – “Anarquia: sistema político para cidades com menos de 50 mil habitantes”.