Difícil confiar em uma Justiça que toma decisões contraditórias em casos inequivocamente idênticos

 
Dizem os economistas que no Brasil a questão tributária transformou-se em um pandemônio, tamanha é a complexidade que permeia o cálculo e o recolhimento de impostos. Contudo, não é apenas na seara dos tributos que o País demonstra um cenário intrincado e de difícil compreensão. Na seara da Justiça, por exemplo, a tomada de decisões antagônicas por parte dos juízes em casos semelhantes é um escárnio sem precedentes.

Reza a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º (caput), que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Em outras palavras, a Carta Magna reforça o dito popular “pau que bate em Chico, bate em Francisco”. Mas no Brasil, infelizmente, alguns Franciscos são melhores do que muitos Chicos.

Há dias, a Justiça de São Paulo concedeu o benefício da prisão domiciliar ao ex-policial Mizael Bispo de Souza, condenado pelo assassinato da então namorada Mércia Nakashima, em maio de 2010. Em decisão liminar, Mizael conquistou o benefício por fazer parte do chamado “grupo de risco” para a Covid-19.

No recurso apresentado ao Tribunal de Justiça paulista, a defesa do ex-policial alegou que Mizael é portador de várias comorbidades, como pressão alta, colesterol elevado, arritmia cardíaca, depressão, ansiedade, sinusite e rinite crônica.

“O Mizael foi avaliado pelo médico da unidade prisional [presídio de Tremembé] no qual ratificou que o mesmo realmente faz parte do grupo de risco”, complementou o advogado Raphael Abissi Bhichara Abi Rezik.

No contraponto, o promotor Rodrigo Merli, responsável pela acusação durante o julgamento de Mizael, criticou a concessão do benefício. “Falar do grupo de risco porque ele tem rinite chega a ser hilário. Dizer que ele é do grupo de risco porque ele está depressivo. Quem está depressivo há mais de uma década são os familiares da Mércia”, ressaltou o membro do Ministério Público.

Em outra ponto do emaranhado jurídico nacional, sempre marcado pelo bamboleio interpretativo dos magistrados, a Justiça de São Paulo determinou que o ex-médico Roger Abdelmassih, condenado a 173 anos de prisão por estupro de 56 pacientes, retornasse ao regime fechado.

Abdelmassih conquistou o benefício da prisão domiciliar em abril passado por integrar o “grupo de risco” para a Covid-19. O especialista em inseminação artificial, que cumpria pena na Penitenciária Dr. José Augusto César Salgado, na cidade de Tremembé, tem 76 anos de idade e enfrenta problemas de saúde. Esse quadro embasou a concessão da prisão domiciliar.

 
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Na última sexta-feira (28), a Justiça de SP determinou que Abdelmassih retornasse ao regime fechado, sob a alegação de que a prisão domiciliar é “privilégio restrito aos beneficiários do regime aberto” e que o caso não se aplica ao ex-médico.

Em sua decisão, o desembargador José Raul Gavião de Almeida, da 3ª Vara das Execuções Criminais de São Paulo, que atendeu a recurso do Ministério Público estadual, alegou que problema no coração enfrentado por Abdelmassih “é o mesmo para qualquer um que tenha uma cardiopatia desta natureza, dentro ou fora do sistema prisional”.

Gavião de Almeida ressaltou que outras questões de saúde destacadas pela defesa podem ser tratadas na unidade prisional, sendo que o médico oficial não fez qualquer recomendação sobre a impossibilidade de tratamento de tais doenças no presídio.

Caso Fabrício Queiroz

Sabem os leitores do UCHO.INFO que nosso compromisso maior e primeiro é com o estrito cumprimento da lei – sem direito a qualquer devaneio interpretativo que favoreça uma minoria –, sem jamais ter saído em defesa de criminosos pelo simples fato de simpatizar com um ou outro. Nosso papel como órgão de imprensa é zelar pela democracia, onde a isonomia no tratamento dos cidadãos é peça basilar.

Esse entendimento dúbio da Justiça brasileira se fez presente recentemente na decisão do então presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro João Otávio de Noronha, que concedeu o benefício da prisão domiciliar ao operador do esquema das “rachadinhas”, Fabrício Queiroz, e à sua esposa, Márcia Aguiar, que à época encontrava-se foragida.

Ora, se Queiroz tem direito à prisão domiciliar por integrar o “grupo de risco” para a Covid-19 e carece da presença da própria mulher para prestar-lhe os aludidos cuidados, assim como Mizael goza do mesmo benefício por idênticas razões, Abdelmassih não pode fugir a esse entendimento.

Ressaltamos, mais uma vez, que nosso objetivo não é defender esse ou aquele criminoso, até porque cada um deve responder por seus atos com base na legislação vigente, mas é impossível confiar em uma Justiça que toma decisões antagônicas em casos idênticos.

Prisão domiciliar de Adriana Ancelmo

Lembramos que por ocasião da transferência da advogada Adriana Ancelmo, ex-primeira-dama do Rio de Janeiro, para a prisão domiciliar, por ter filhos menores de 14 anos, como determina a lei, defendemos que o benefício fosse estendido a todas as mulheres presas no País e que se enquadrassem nesse cenário previsto pela legislação. A Justiça simplesmente ignorou o direito de todas as presas em condições similares.

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