Cangaço do século XXI

(*) Gisele Leite

O Rio de Janeiro está se tornando a chaga produzida pela má política brasileira. Não bastasse o decretado afastamento do governador tendo em vista a colaboração premiada de ex-Secretário de Saúde. A administração municipal inventou novo mantra: Xô, jornalista!

Acabo de tomar conhecimento que o Prefeito-bispo contrata pessoas (por régios salários) para impedir e constranger (i) jornalistas e cidadãos que reclamem da saúde pública. Lembrando que nenhum desses servidores são concursados, nem possuem função própria. E, sua escalação laboral se dá por meio de WhatsApp.

A atuação dos “capangas”(melhor definição foi dada por Flávio Fachel) da prefeitura é ilegal, pois significa impedir o exercício profissional dos jornalistas, além de crimes de ameaça, contra a honra, e principalmente, uma afronta constitucional que nos garante a liberdade de imprensa e o direito à informação. Isto sem contar, a organização criminosa pois os ditos “guardiões” atuam em conjunto.

Trata-se de improbidade administrativa e violação grave dos deveres do Executivo municipal. Há violação da liberdade de manifestação de pensamento e opinião, além de restringir a difusão de informações. Vislumbro igualmente o crime de abuso de autoridade (ii) conforme prevê a Lei 13.859/2019.

Há o Projeto de Lei 199 de 2015 que prevê o crime de violação de prerrogativas do jornalista. Temos que desengavetar o referido Projeto de Lei. Em setembro de 2009, o STF declarou que a Lei de Imprensa de 1967 é inconstitucional, por um quórum de sete votos a quatro pois não fora recepcionada pela nova ordem democrática imposta pela Constituição Federal Brasileira de 1988.

Precisamos nos conscientizar de que existe uma ligação direta entre a imprensa e a sociedade civil e, tal interação não pode ficar sem a mediação do Estado. A imprensa é fundamental para um Estado Democrático, portanto resguardado seu direito de expressão, bem como o exercício da profissão.

O labor jornalístico está relacionado com a liberdade de manifestação de pensamento e opiniões e o direito de acesso à informação. Convém ressaltar que não basta uma imprensa livre, mas que seja igualmente diversa e plural.

Daí, a conduta de tais funcionários (denominados como “guardiões”) tipifica plenamente o crime de atentado contra a segurança de serviço de utilidade pública (artigo 265 Código Penal brasileiro) que é apenado com reclusão de um a cinco anos e multa.

É um absurdo que a gestão municipal se dedique a impedir o real relato sobre a situação de hospitais municipais e do claudicante atendimento na saúde pública no Rio de Janeiro em meio à pandemia de Covid-19. Trata-se de crime de responsabilidade previsto no texto constitucional vigente no artigo 85, inciso III.

Hely Lopes Mereilles foi autor do conhecido Decreto-Lei 201/1967 que disciplina as esferas de responsabilidade do Prefeito municipal. Afinal, “prefeito não é funcionário público e, sim, agente político incumbido da chefia do Poder Executivo do governo local”, e no desempenho de suas funções poderá, infelizmente, perpetrar ilícitos de ordem penal, político-administrativo ou até mesmo civil, dando azo as sanções que serão aplicadas em processos distintos e independentes.

De acordo com a Federação Nacional dos Jornalistas foram 208 casos em 2019 contra 135 em 2018. E, o atual presidente da República (iii) foi responsável individualmente por 58,17% dos ataques. E a região de Sudeste é a que mais registra casos de violência direta contra os jornalistas.

E, a segunda região mais violenta é o Centro-Oeste. Já entre os Estados da federação brasileira, é São Paulo o mais violenta contando com 20,21% do total.

O relatório da Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) (iv) indica também que os jornalistas que trabalha em televisão são as principais vítimas de agressões. m 2019, foram 35 casos (28,23% do total).

Profissionais que atuam em jornal impresso ocupam a segunda posição: 33 casos ou 26,61% do total. Em terceiro lugar, estão os jornalistas de mídia digital (portais, sites e blogs), com 23 casos (18,55%). O mesmo relatório em referência também aponta que os políticos são os principais agressores de jornalistas.

Tais fatos me remetem ao período específico entre 1927 e 1938, no nordeste do Brasil onde imperava o cangaço, sendo Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, Rei do Cangaço que certa vez disse que “… cangaceiro, coronel e político são farinha do mesmo saco. Contratam os cangaceiros para que façam o serviço sujo que eles não querem fazer…”. Portanto, sejam bem vindos ao Cangaço do século XXI.

Um questionamento deve ser feito: que tipo de política é esta que quer impedir a transparência e o direito à informação? É aquela que não é legitimada pela boa-fé do eleitor que acreditou nas promessas de campanha. É aquela política que só tem o que ocultar.

Referências:
DELMANTO, Celso; Delmanto, Roberto; Delmanto Junior, Roberto; Delmanto, Fábio M. de Almeida. Código Penal Comentado. 6ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

MEIRELLES, Hely Lopes. Responsabilidades do Prefeito. Revista do Direito Administrativo 138. Disponível em:http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/viewFile/42297/41014 Acesso em 01.09.2020.

(i) O crime de constrangimento ilegal consiste, nos termos do art. 146 do CP, na conduta pela qual o indivíduo visa constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda.

(ii) O abuso de Autoridade é crime e abrange as condutas abusivas de poder, conforme a explicação abaixo. O abuso de poder é gênero do qual surgem o excesso de poder ou o desvio de poder ou de finalidade. Assim, o abuso de poder pode se manifestar como o excesso de poder, caso em que o agente público atua além de sua competência legal, como pode se manifestar pelo desvio de poder, em que o agente público atua contrariamente ao interesse público, desviando-se da finalidade pública. Tratam-se, pois, de formas arbitrárias de agir do agente público no âmbito administrativo, em que está adstrito ao que determina a lei (princípio da estrita legalidade). Relativamente ligado ao abuso de poder, o abuso de autoridade é crime. Assim, o crime do abuso de autoridade tem a tipificação de condutas abusivas de poder, dentro do Código Penal. Além disso, utiliza os conceitos administrativos para tipificar condutas contrárias à lei nos âmbitos penal e disciplinar. Desta forma, é possível dizer que além do abuso de poder ser também uma infração administrativa, suas características encontram no âmbito penal o abuso de autoridade. Geralmente, essas características abrangem outras condutas ilegais do agente público. A exemplo pode-se citar um delegado que tenha induzido ou usado informações a ele confiadas – por persuasão, as falas de uma testemunha. Neste caso, ocorreu o crime de prevaricação, disposto no Art. 319 – Código Penal, a saber: Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal. Pena: detenção, de três meses a um ano, e multa. Os crimes de abuso de autoridade, podem ocorrer se: § 1º – Se o agente é funcionário público, e comete o crime prevalecendo-se do cargo, aumenta-se a pena de sexta parte. Outro ponto é a detenção de seis meses a dois anos, mais multa, para a autoridade que tenha pedido vista, com intenção de atrasar o processo e retardar o julgamento. Além disso, recaem sobre o crime de abuso de autoridade a insistência em inquirir pessoas que já tenham decidido ficar em silêncio, por exercer seu direito a um advogado para acompanhar o testemunho.

(iii)Inesquecível que a porta da Catedral de Brasília a mais alta autoridade da república brasileira bravejou que encheria de porra a boca de jornalista que apenas perguntava sobre o depósito em dinheiro de 89 mil na conta de sua atua esposa.

(iv) Consulte no link o referido relatório: https://fenaj.org.br/wp-content/uploads/2020/01/relatorio_fenaj_2019.pdf

(*) Gisele Leite – Mestre e Doutora em Direito, é professora universitária.

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