A decisão equivocada do governo de Jair Bolsonaro de “esticar a corda” ao máximo no caso da declaração do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que associou o Exército ao genocídio em que se transformou o avanço da Covid-19 no País, tem razões políticas.
Profissionais de imprensa que acompanham com proximidade o cotidiano da política no Planalto Central têm conhecimento do modus operandi que prevalece nos bastidores, em especial quando os donos do poder recorrem a estratégias absurdas para deflagrar uma espécie de operação de salvamento. Ou seja, causa estranheza o fato de jornalistas que cobrem a política nacional aderirem ao “pano quente”, como se estivessem preservando fontes e mantendo as portas abertas em palácios, ministérios e repartições. Jornalismo não é isso e está longe desse “em cima do muro” que muitos adotam.
A insistência do vice-presidente Hamilton Mourão em rebater a fala de Gilmar Mendes e cobrar do ministro do STF uma retratação, usando para tanto o termo “grandeza moral”, mostra de maneira clara que o governo assimilou o golpe e não sabe como justificar o fiasco que se instalou no Ministério da Saúde na interinidade do general Eduardo Pazuello, um especialista em logística que cumpre ordens de Bolsonaro. E silenciar diante da declaração do ministro do STF seria reconhecer que o governo acabou.
Quando as Forças Armadas, em especial o Exército, decidiram embarcar no governo de Jair Bolsonaro, militar que deixou a caserna pela porta dos fundos em razão de indisciplina e atuação terrorista, estava evidente que a parceria em algum momento produziria efeitos negativos, principalmente aos oficiais que ocupam centenas de postos na Esplanada dos Ministérios.
Depois da tragédia que brotou da ditadura, instalada no País com o golpe de 64, as Forças Armadas submergiram na medida do possível para tentar apagar o carimbo do mais obscuro e criminoso período há história brasileira. Com a vitória de Bolsonaro nas urnas, os militares se arvoraram a mais uma vez subir a rampa do Palácio do Planalto, deflagrando um processo canhestro de militarização de um governo eleito dentro das regras democráticas, o que não anula as transgressões cometidas pela chapa vitoriosa, como, por exemplo, o impulsionamento de mensagens.
Mourão percebeu que a imagem do Brasil no cenário internacional não é das melhores por causa da desastrada política ambiental do governo, algo que Jair Bolsonaro levou adiante como forma de compensar alguns nichos do ruralismo verde-louro que despejaram fortunas em sua campanha. É a tal máxima “é dando que se recebe”, trecho de frase atribuída a São Francisco de Assis.
Se na seara ambiental a situação brasileira é deplorável, a ponto de investidores estrangeiros terem se recusado a financiar projetos de sustentabilidade na Amazônia, na área da saúde o cenário é muito pior e macabro.
Populista convicto, como todo candidato a tiranete que se preza, Bolsonaro sempre diz que concorreu à Presidência para colocar o País nas alturas. Até o momento, o que se viu foi uma sequência decisões absurdas que levaram o Brasil ao descrédito global, a ponto de produtos brasileiros do agronegócio enfrentarem a resistência de compradores internacionais.
No tocante à saúde, a fala do ministro Gilmar Mendes foi no amigo da questão e feriu os brios da caserna, que, atendendo a ordens do presidente da República, tem prorrogado a indignação com o termo “genocídio”.
Diferentemente da interpretação de alguns sobre o vernáculo usado pelo ministro do Supremo, a palavra genocídio tem, atualmente, significado mais amplo e flexível, como previsto no artigo 6º do Estatuto de Roma, de 17 de julho de 1998.
“Art. 6º – Crime de Genocídio – Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por “genocídio”, qualquer um dos atos que a seguir se enumeram, praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal:
a) Homicídio de membros do grupo;
b) Ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo;
c) Sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial;
d) Imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo;
e) Transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo.”
Com índice de aprovação travado há meses em um terço da opinião pública, Bolsonaro vê nessas manifestações – a dos investidores internacionais e a do ministro Gilmar Mendes – como pedra no caminho do seu projeto de reeleição, apesar de o presidente afirmar que por enquanto não está preocupado com o tema. Além disso, Bolsonaro é alvo de representação por crime contra a humanidade no Tribunal Penal Internacional, em Haia, na Holanda.
Sem ter mostrado até agora a que veio, Jair Bolsonaro recorre a interlocutores, no caso Mourão, para avançar com essa contenda, pois qualquer manifestação sua sobre o assunto repercutirá negativamente nos processos e inquéritos que tramitam no Judiciário e envolvem seus filhos e ele próprio. Ou seja, Mourão age não apenas como defensor da caserna, mas como boneco de ventríloquo do “Jairzinho Paz e Amor”, que, é bom lembrar, tem prazo de validade curto.
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