Lady Gaga e eu pensamos diferente ou ela não conhece o verdadeiro Brasil

    (*) Ucho Haddad –

    Há muito não faço uma conexão entre música e política, mas resolvi mergulhar nesse binômio na esteira de um fato pontual. Quando pensei em escrever sobre o tema, logo veio à mente o execrável período da ditadura, época em que a livre manifestação do pensamento era proibida. E a música era uma das poucas maneiras de protestar contra o regime, mesmo que de forma disfarçada.

    Diferentemente do que ocorria nos anos de chumbo, quando cantores mandavam recados enviesados aos donos do poder, desta vez foi Lady Gaga quem me obrigou a escrever. Sou tão devoto da música negra norte-americana, que durante alguns anos me dediquei a pesquisá-la lá na Terra do Tio Sam, mas a voz de Lady Gaga chama a minha atenção. Não sou fã do estilo musical da nova diva do pop, porém reconheço que se trata de um fenômeno da indústria fonográfica.

    Se por um lado Lady Gaga exala competência em cima do palco e diante do microfone, em questões de Brasil ela é apenas estreante. Além de ser uma tremenda desavisada. Quem vem ao País pela primeira vez se encanta com a natureza e com o calor do povo brasileiro, mas uma semana adicional na agenda começa a produzir desapontamentos. Até porque o cotidiano não é dos melhores. Nem de longe se trata de uma lufada de antipatriotismo da minha parte, pois muitos sabem que sou um patriota incorrigível, mas não posso perder a coerência do pensamento e nem me calar diante de temas que discordo.

    Durante o show que fez no Rio de Janeiro, na última sexta-feira (9), Lady Gaga disse que “o Brasil é o futuro”. Para quem conhece a verdade verde-loura, a declaração da cantora soa como uma ode à inocência. Por certo ela se surpreendeu com o carinho dos fãs à porta do hotel e no local do espetáculo, o que deve acontecer sempre por onde passa, mas a realidade tupiniquim é uma música pra lá de desafinada, que possivelmente ela se recusaria a cantar.

    Há cinquenta anos escuto que o Brasil é o país do futuro. A toda hora alguém repete essa cantilena. Seja um enganado, seja um enganador. Se meio século não é tempo suficiente para que pelo menos alguma mudança lógica ocorra, que alguém me avise quanto tempo é necessário para que isso aconteça. Com o passar dos anos fui descobrindo que esse futuro sempre mantinha a mesma distância imposta pelo populismo avassalador de alguns políticos profissionais. Trata-se de figura de retórica de governantes que precisavam, como ainda precisam, justificar a própria incompetência. Lady Gaga não tem obrigação de saber o que se passa por aqui, mas o Brasil enfrenta situações em que o atraso é a moldura do caos, ao contrário do que se alardeia mundo afora.

    Não se pode falar em futuro quando milhões de pessoas lutam diariamente para conseguir um litro de água, enquanto as obras de transposição do Rio São Francisco estão praticamente paralisadas. Não se pode falar em futuro enquanto brasileiros morrem diariamente nas filas dos hospitais públicos à espera de um atendimento médico que nunca chega. Não se pode falar em futuro quando para um governo fanfarrão é mais importante entupir as ruas com carros novos do que investir em transporte público. Não se pode falar em futuro quando os governantes permitem que o país seja a principal rota do tráfico internacional de drogas. Não se pode falar em futuro quando milhões de pessoas se curvam diante do apelo de um presidente irresponsável e se endividam como “nunca antes na história deste país”. Não se pode falar em futuro quando a carga tributária representa mais de um terço da riqueza produzida no país. Não se pode falar em futuro enquanto as esmolas sociais continuarem comprando o silêncio dos desvalidos. Não se pode falar em futuro quando um chefe de Estado, para fugir da responsabilidade, afirma que apagão não é blecaute e vice-versa. Não se pode falar em futuro quando a corrupção é tratada com desdém e blasfêmias. Não se pode falar em futuro onde a impunidade grassa de maneira acintosa. Não se pode falar em futuro quando o modelo vigente é uma ditadura disfarçada.

    Por certo Lady Gaga tem uma definição de “futuro” distinta da minha e de muitos outros brasileiros que não se deixam levar pelas bravatas oficiais, mas se o planeta não acabar logo, todos os países devem ser considerados, desde já, do futuro. A diferença é que em algumas poucas nações esse futuro surgirá com a mesma dignidade que marca a vida dos seus cidadãos no presente.

    No Brasil, esse que Lady Gaga desconhece, uma minoria criminosa, que circula impune com o mandato espremido na axila, já garantiu o próprio futuro, enquanto a extensa e tola maioria continua sufocada pela indignidade da vida e aguardando o que jamais virá.

    Lady Gaga deve continuar fazendo o que sabe, cantando e encantando a legião de fãs, deixando essa história de país do futuro para nós, brasileiros, que conhecemos muito bem a dura realidade e a modorrenta velocidade do relógio dos saltimbancos que se apoderaram do Brasil.

    O futuro é amanhã, é o minuto seguinte, que por aqui é nada sombrio, pois no Brasil o ontem ainda continua sem solução.