Quebra-cabeça – A imprensa brasileira esbanjou na quantidade de especialistas em assuntos do Vaticano durante o conclave que escolheu o argentino Mario Jorge Bergoglio, o papa Francisco, como sucessor de Joseph Ratzinger, o emérito Bento XVI. As apostas sobre quem seria o novo pontífice da Igreja Católica foram tão absurdas quanto os comentários e as conjecturas. Arriscar um palpite sobre a decisão de um colegiado que sofre interferências de todos os lados é extremamente perigoso. Mesmo assim, sobraram palpites equivocados.
Mesmo com o editor acompanhando a Santa Sé há mais de trinta anos, o ucho.info optou pelo comedimento e preferiu não opinar sobre assunto que envolve uma ferrenha e secular disputa nos bastidores da Praça São Pedro.
Como informamos em matéria publicada na edição de quarta-feira (13), o cardeal brasileiro Odilo Scherer teve o nome incensado na condição de massa de manobra. O que não significa que o arcebispo de São Paulo não reúna atributos para o cargo, pelo contrário. A situação em que Scherer foi considerado papável ficou evidente no momento em que ele saiu em defesa da Cúria Romana, durante cobrança feita por cardeais ao camerlengo Tarciso Bertone, que evitou a transparência no caso dos escândalos que levaram à renúncia de Ratzinger. Mesmo com poucas chances de vencer a eleição, Scherer errou a defender Bertone na esperança de conquistar os votos dos cardeais europeus.
O objetivo de uma ala da Igreja foi alcançado no vácuo do nome de Odilo Scherer, nomeado por Bento XVI como fiscal das operações financeiras do Banco do Vaticano. A ideia era acuar os adversários com a possibilidade de Scherer promover uma faxina na Santa Sé e todas as suas nebulosas reticências.
Se Bergoglio venceu a disputa para ocupar o trono de Pedro, o maior perdedor foi Tarciso Bertone, um clérigo prepotente que sempre usou a sua influência, durante o papado de Bento XVI, para afastar da Santa Sé os seus principais adversários. O primeiro a cair foi Ettore Gotti Tedeschi, então presidente do Istituto per le Opere di Religione (IOR), mais conhecido como Banco do Vaticano. Tedeschi teve uma passagem conturbada pela direção do IOR, ocasião em que ocorreram novos casos de branqueamento de capitais, contrariando ordem de Ratzinger para alinhar a instituição às leis internacionais de combate à lavagem de dinheiro.
Ettore Tedeschi integrava uma facção rival da de Tarciso Bertone e foi ejetado do cargo porque, mesmo transgredindo, elaborou um farto dossiê sobre as escusas operações realizadas pelo Banco do Vaticano. E seu afastamento foi a forma que Bertone encontrou para se proteger.
O segundo a cair na seara covarde de Tarciso Bertone foi o cardeal italiano Carlo Maria Viganò, então segundo homem na administração do Vaticano. Em carta endereçada a Bento XVI, cujo conteúdo acabou vazando para a imprensa, Viganò, que foi secretário-geral do governorado do Vaticano, afirmou que lá “trabalham as mesmas empresas, ao dobro (do custo) de outras de fora, devido ao fato de não existir transparência alguma na gestão dos contratos de construção e de engenharia”. Para que o caso não se transformasse em mais um escândalo na seara da Igreja Católica, o Vaticano informou que as afirmações de Carlo Maria Viganò resultavam de “avaliações incorretas”.
Viganó avançou em suas denúncias e destacou: “Jamais teria pensado em me encontrar diante de uma situação tão desastrosa”, que apesar de ser “inimaginável, era conhecida por toda a Cúria”. Além disso, o denunciante afirmou que banqueiros que integram o chamado Comitê de Finanças e Gestão se preocupam muito mais com os próprios interesses do que com os do Vaticano, lembrando que em dezembro de 2009 “queimaram US$ 2,5 milhões” em uma operação financeira.
Por ingerência de Tarciso Bertone, o cardeal Viganó foi designado núncio apostólico nos Estados Unidos. Foi nos EUA que a reviravolta na escolha do novo papa começou, passando por Honduras, onde encontrou o apoio do cardeal Óscar Rodríguez Maradiaga, salesiano como Bertone, mas desafeto do então homem-forte da Santa Sé.
Foi também nos Estados Unidos que começou um movimento silencioso contra Tarciso Bertone, orquestrado pela cúpula da Ordem dos Cavaleiros de Colombo. Coincidência ou não, foi Carl A. Anderson, chefe supremo da Ordem dos Cavaleiros de Colombo e um dos quatro integrantes do conselho do Banco do Vaticano que pediu a Ratzinger a saída de Ettore Tedeschi. Ligado a João Paulo II, o norte-americano Carl Anderson foi indicado para o conselho do Banco do Vaticano por Bento XVI. Isso mostra que o papa emérito colocou na direção do Banco do Vaticano representantes das duas maiores organizações ligadas à Igreja Católica: Cavaleiros de Colombo e Cavaleiro da Ordem de Malta.
A partir de agora resta esperar a escolha dos integrantes do núcleo duro do Vaticano para fazer prognósticos sobre o futuro da Igreja Católica e os reflexos da escolha do novo papa no cotidiano global. Pelo menos uma coisa é certa. Houve ingerência política na eleição do cardeal Mario Jorge Bergoglio, um defensor dos pobres que pende para a direita e já teve problemas com os esquerdistas Kirchner. A confirmação deste cenário está no cardeal hondurenho Óscar Andrés Rodríguez Maradiaga, arcebispo de Tegucigalpa, articulador da candidatura de Bergoglio. Maradiaga ficou conhecido por ser adversário de Manuel Zelaya e crítico ácido do finado caudilho Hugo Chávez.