Brasil: da tragédia de Santa Maria ao espetáculo acintoso da eleição de Renan

    (*) Ucho Haddad –

    O noticiário do final de semana continuou reverberando a eleição de Renan Calheiros à presidência do Senado, algo que em um país minimamente sério, onde a maioria da opinião pública pensa e não é anestesiada por esmolas sociais, jamais teria ocorrido. Política no Brasil é um constante e teimoso caso de polícia. Basta verificar o número de CPIs que já foram criadas no Congresso Nacional, um misto de clube privado de negócios com inócua delegacia de polícia, abrigado em construção que leva a assinatura de Oscar Niemeyer e que pomposamente marca uma das fronteiras da Praça dos Três Poderes.

    Quando o senador alagoano foi obrigado a renunciar à presidência do Senado, em 2007, para preservar o mandato parlamentar, escrevi o artigo “Freddie Mercury e Renan Calheiros”, no qual destaquei que o conchavo corporativista predominaria nos bastidores por única razão. “The show must goes on”. Política é um espetáculo modorrento e fétido que precisa continuar, pois sem essa cornucópia incansável seus operadores não mais conseguem viver. E vice-versa. O poder é uma máquina sórdida e imunda, cujas engrenagens são cada vez mais interdependentes. A única receita para o antídoto contra esse mal é o jornalismo responsável combinado com o engajamento da sociedade. Mas isso ainda é sonho nessa louca Terra de Macunaíma.

    Todos são assim na política nacional? Quase todos! A extensa maioria não escapa desse padrão, apesar de haver raríssimas exceções. Contudo, antes de colocar a mão no fogo por alguém procure saber quem é o indivíduo que você está disposto a defender. Porque a chance de torrar a mão, em uma escala de zero a dez, é onze. E caso você não tenha um bom plano de saúde, terá de enfrentar a fila do SUS com a ardência na mão.

    Um dos badalados sites de notícias trouxe a informação de que Renan Calheiros terá direito a residir na mansão destinada ao presidente do Senado, combustível à vontade e 24 cargos para distribuir entre os apaniguados. Não é apenas isso que estará à disposição do senador alagoano. Como chefe de um dos Poderes da República, Renan poderá requisitar, quando quiser, um jato oficial para os seus deslocamentos. Poderá também circular por Brasília cercado de engalanados e estridentes batedores, como já fez o histriônico João Paulo Cunha, mensaleiro condenado à prisão quando estava na presidência da Câmara dos Deputados.

    Tais informações podem ter deixado milhões de brasileiros indignados, mas essas benesses são quireras perto do estrago que a eleição de Renan provoca no inconsciente coletivo. Quando insisto que Lula turbinou a sensação de impunidade, agora reforçada com a sua condição de fugitivo da imprensa, muitos me dirigem críticas, sempre sob a alegação de caretice, intransigência, obsolescência do pensamento e por aí vai. Não deixo me levar pelas ofensas e nem mesmo mudo o pensamento. Isso não mais me entristece, mas dói na alma ver o País afundando na areia movediça que cobre a vala da corrupção e da impunidade.

    A cada notícia ruim que é levada ao público há um pouco da contumácia criminosa do Estado e da letargia de um povo que se amedronta ao ouvir o balbuciar da palavra reação. Esse cenário de combinações é o que sonha qualquer candidato medíocre a ditador. O crime do Poder corre solto e a sociedade é silenciosamente conivente. Nos dias atuais, nas condições em que vivemos, transformar o Brasil em uma versão agigantada da Venezuela é uma questão de disposição e ousadia. O resto está pronto.

    Uma sociedade organizada não funciona dessa forma, no vácuo do jeitinho, na esteira do vale-tudo, no cerne da certeza burra de que depois de cometida uma transgressão qualquer sempre é possível contornar a situação aqui ou acolá, com um conhecido que é amigo de fulano ou de sicrano, que diz conhecer um terceiro que é autoridade. O exemplo maior de que essa fórmula não funciona materializou-se na tragédia de Santa Maria, onde as chamas da impunidade arderam em uma casa noturna e tiraram a vida de 237 pessoas. O acidente ocorrido na cidade gaúcha, que comoveu o País e ganhou o noticiário internacional, resultou da forma como existimos e de como deixamos o Estado existir.

    Imaginar que o Brasil pode dar certo sob os acordes da corrupção, da impunidade, da propina e do conchavo é aceitar a própria ignorância. Essa valsa macabra é a dança do precipício, é a certeza de que o errado é a luz que não acende no final do túnel. Para viver de maneira minimamente digna no Brasil e dentro do que determina o bom senso é preciso começar do zero. Será necessário refazer a nação, reeducar a população, reinstituir valores morais invioláveis, reinventar o jeito de existir, delimitar mais uma vez as fronteiras da legalidade.

    Quando estacionar um veículo na rua obriga o seu proprietário a dar algum dinheiro ao “flanelinha”, que tomou para si, como se privado fosse, aquilo que é público, é impossível acreditar que o País pode dar certo. Se não pagar o que é exigido pelo “flanelinha”, o dono do carro corre o risco de voltar à pé para casa, pois na órbita daquele que acredita ser o “dono do quarteirão” gravita um sequência de cidadãos que agem e lucram à sombra da atuação ilegal do Estado. Entre contestar o status quo e proteger o patrimônio, o motorista, por razões óbvias, fica com a segunda opção. E o Estado que caminhe livre, leve e solto pelas vias tortuosas da própria ilegalidade.

    A eleição de Renan Calheiros, assim como a impunidade que recobre Lula, é o novo capítulo da cartilha do péssimo exemplo. Deixará aos brasileiros mais uma lição utópica e devastadora, que ensina que o errado é certo, que o errante é aquele que se dá bem, que a malandragem é o atalho para o sucesso, que o fora da lei, cedo ou tarde, consegue aniquilar a força que deveria puni-lo. A imprensa, chamada de quarto poder e que deveria cobrar diuturnamente o Estado, aceita se curvar diante das ilegalidades oficiais em troca do dinheiro público que financia campanhas publicitárias milionárias e enganosas. Pouco importa o efeito colateral que essa postura de conivência mútua e bandida causa na sociedade. O principal é o poderoso continuar no poder e os veículos midiáticos que o adulam entupirem os cofres. Eis o ritmo que marca a dança que coloca no salão da desfaçatez o banditismo político e a parcela prostituta da imprensa.

    Dentro de alguns dias – o período momesco está logo adiante – a eleição de Renan Calheiros e a tragédia de Santa Maria começarão a sair lentamente da mídia. Até porque, a política e a imprensa são pujantes, precisam da continuidade como razão da existência. O jornalista, que como eu e alguns poucos que conheço, se indigna e passa anos a fio cobrando o Estado e suas autoridades é considerado como louco, fora da realidade, esquizofrênico e outros tantos adjetivos descabidos. É perseguido, grampeado, processado e condenado. Os outros, que agem na contramão da lógica e da racionalidade, dão autógrafos, posam para fotos ao lado de fãs, concorrem a prêmios e outros quetais, negociam seus passes a peso de ouro. Para quê? Para induzir a sociedade a erro e proteger um Estado que insiste em ser criminoso.

    Logo mais, a imprensa precisará de notícias dos bastidores da política. E os políticos, por questões pessoais e partidárias, precisarão estar nas manchetes sem a essência luciferiana, mas destilando a falsa bondade como se querubins barrocos fossem. É nesse momento que ocorre a barganha espúria entre os veículos de comunicação e os donos do poder. Para não ser leviano e alcaguete, pois não tenho vocação para tal, abstenho-me de revelar como se consegue em Brasília, em muitas situações, matérias exclusivas, furos de reportagem, informações de bastidores. E na capital dos brasileiros há os que batem no peito e destilam lições de ética e moralidade quando o assunto é jornalismo.

    Para que a desfaçatez não fosse total, alguns senadores lançaram uma segunda candidatura à presidência do Senado. Fizeram isso para marcar posição, porque sabiam que a derrota era inevitável. Apareceram na mídia na condição de críticos dos conchavos, profetas da moralidade, derradeiros salvadores do parlamento nacional, protetores dos interesses da nação e do povo. Balela da mais fajuta que existe. Esse oposicionismo de ocasião foi previamente combinado, depois que a vitória de Renan Calheiros já estava garantida, já era considerada como favas contadas. Quando a primeira necessidade surgir, os “perdedores” se juntarão aos “vencedores” e vice-versa. Como política é negócio, tudo tem seu preço. Não custa lembrar que Renan Calheiros foi ministro da Justiça de Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, partido que no Senado se colocou contra o alagoano.

    Durmo pouco, todos os dias, mas o sono é profundo e embalado pela tranquilidade e a leveza da consciência. Faço o meu papel diariamente e de forma incansável. É verdade que muitos são os que tentam me derrubar, mas, sempre amparado pelo Criador, a cada manhã lá estou, diante do computador, usando o raciocínio, a experiência e o teclado como armas contra esses saltimbancos com mandato, que acreditam estar acima de todos e das leis.

    Não nasci para ser profeta do apocalipse, nem mesmo quero sê-lo, mas há décadas aponto o indicador na direção dos pecados do Estado e dos governantes. Enquanto era alvo de impropérios, o mal corroeu com voracidade a sociedade e a nação. Vítima, incompreendido? Jamais! Apenas agi, continuo agindo e assim farei, com patriotismo e profissionalismo exacerbados.

    Permaneçam, meus compatriotas, como estão. Deitados em berço esplêndido – inertes, contemplativos e imutáveis – porque, como cantou Freddie Mercury, o show precisa continuar. Outros Renans hão de aparecer na rabeira da caravana ladra da política nacional, outras boates serão consumidas pelas labaredas da impunidade e da corrupção, muitas centenas de vidas ainda serão ceifadas pela existência criminosa e mitômana do Estado.

    É por isso que o Brasil será eternamente o país de um futuro que nunca chegará!